Meu último dia

Acordei hoje com a certeza de que iria morrer.

Uma dor de cabeça infernal, enjoos e uma agulhada forte no coração. Já fazia alguns meses que não me sentia tão mal assim.

Seis meses atrás recebi o diagnóstico de um maldito câncer na cabeça que me levaria à morte em pouco menos de um ano, por isso mesmo tenho a certeza de que o ceifador do inferno veio acertar as contas comigo hoje.

Enquanto todos os demais encaram a morte com doçura e sensatez eu me tornei a pessoa mais amargurada da face da terra, não tenho raiva de Deus, não acredito nele, mas raiva dessa vida de merda que levamos.

Levantei, fui para o chuveiro. Se existe uma ocasião perfeita para morrer é enquanto se toma banho, passei alguns minutos pensando nisso e dentre outros devaneios percebi que hoje vivo melhor do que muitos, quantos, com minha idade, teriam o tempo livre que eu tenho? É um privilégio para poucos. Chega a ser até irônico, justamente quando eu tenho apenas pouco tempo de vida eu aprendi o que realmente é viver. Depois de trinta minutos me arrumei e pensei no que iria fazer pra aproveitar essa oportunidade de viver cada dia como se fosse o último (e hoje é).

O lado bom de ter pouco tempo de vida é que você não precisa se preocupar em como vai viver (ou sobreviver), as pessoas se solidarizam e tentam viver por você. É como andar em um metrô onde todos os outros passageiros sabem que você vai descer no próximo ponto e cedem o lugar para você ter alguns minutos de conforto. Eu me aproveitava disso, no começo com um pouco de vergonha, agora, sem caráter algum. O namorado da minha mãe me cedeu um carro para passar meus últimos dias. As minhas tias traziam meu mercado e tudo que eu preciso para não morrer de fome antes de morrer pelo maldito tumor na minha cabeça. Eu tinha tudo à um telefonema de distância, nem precisava fazer drama algum.

'Alô, tia Maria, você teria um pouco de açúcar para me emprestar?'

'Tenho sim, fiz compras ontem, você quer que eu leve aí para você?'

Tia Maria morava dois prédios de distância.

'Se não for pedir demais, acordei hoje muito com muito cansaço.'

'Claro que sim, em um minuto deixarei na portaria do teu prédio, já estava de saída mesmo.'

'Eu agradeço, a senhora é um anjo.'

Desliguei o telefone e voltei a ouvir música e limpar minha coleção de discos. Outro lado positivo quando se está prestes a morrer: poder falar o que quiser. E hoje, além da dor infernal em minha cabeça, acordei com uma vontade absurda de discutir com alguém.

Peguei as chaves do carro e fui em direção ao elevador. Antes de apertar o botão do térreo, Dona Rute, minha vizinha quarentona e viúva, segurou a porta e entrou com o cachorro antipático dela.

'Vai ser essa!' Pensei.

Comecei a cantarolar uma música do Guns 'N' Roses a qual escutava todos os dias.

'Você bem que poderia escutar essa música em um volume mais baixo, não acha?'

Bom, foi ela quem começou.

"Dona Rute, das vezes que eu escutei músicas em um volume alto, inclusive de madrugada, foi para abafar o som do sexo que acontecia no meu quarto. Ou a senhora pensa que eu não percebo que a senhora cola seu ouvido na nossa parede em comum?"

Dona Rute corou.

Durante todo o percurso entre os dezesseis andares até chegar na garagem, o silêncio tomou de conta daquele cubículo que se deslocava arrastando pelas paredes daquele prédio velho.

A única coisa que conseguia pensar naquele momento era algo além do remorso de falar daquele jeito com Dona Rute, ela merecia aquilo, mas eu entendia ela, às vezes eu colava o ouvido quando seu Rubens, o porteiro do prédio, fazia uma de suas visitas secretas na casa dela, foi hipocrisia minha. Eu sentia falta do sexo, não do amor, do sexo mesmo, de uma relação casual, a qual só tive duas oportunidades em toda a minha vida. Mesmo morrendo e com alguns meses de vida na minha conta a minha situação não melhorou muito em se tratando da minha vida amorosa, as pessoas queriam comprometimento, nunca tive, nem quando eu tinha vida de sobra.

A maioria das pessoas sentem uma vontade de se comprometer que acabam superestimando qualquer relação.

Como sexo não estava em questão no momento e não estava a fim de pagar por isso (pra quem eu ligaria pra pedir dinheiro? Pra Tia Maria que não seria). Resolvi ir para o bar. Este é outro local perfeito para morrer. Dentro de um bar envolto do próprio vômito. Na verdade é nojento mas é um local ideal para um ser moribundo.

Tenho poucos amigos e todos eles estão trabalhando nessa terça-feira ensolarada. Então beber acompanhado por alguém que partilharia meus últimos minutos de vida está fora de cogitação.

Resolvi ir ao PUB que trabalhava, costumava funcionar a partir das dez horas. Lá eu tinha cerveja de graça, fornecida pelo meu ex chefe, a título dos serviços prestados e, segundo ele, pela amizade. Na verdade era somente mais um com pena de mim, mal sabíamos o verdadeiro nome um do outro. Mas não estou reclamando, se trata de cerveja gratuita.

Sentei em uma mesa enquanto Raquel, com um ar triste, me servia as cervejas que eu pedia. Atualizei todos os ex funcionários sobre meu atual estágio de doença que é algo mórbido que desperta interesse de todos. Para alguns, os mais próximos, alertei que talvez essa seria minha última visita, gostava de ver a decepção no olhar de cada um. Infelizmente hoje eu tenho mais certeza da minha morte que nos outros dias que eu fiz o mesmo alerta.

Saí do PUB por volta das oito da noite, liguei para meu amigo Marcelo me buscar, contei, chorando, o que havia se passado e minhas previsões para até meia noite.

'Estou morrendo, Marcelo. Que merda'

Cheguei em casa, me joguei na cama, já não sentia mais as dores de cabeça. Mas meu coração batia a um ritmo descontrolado. Em poucos minutos, enquanto eu olhava para a minha coleção de discos antigos, senti a dor se aproximando. Apaguei.

Acordei no outro dia, com uma ressaca infeliz, meu peito dolorido, minha boca estava seca. Eu ainda estava viva, não sei se pra minha felicidade ou tristeza, a única dor de cabeça que eu sentia era por causa das cervejas que eu tomei no dia anterior. Estava eu, sentada à beira da cama, uma mulher de trinta e seis anos, descabelada, com os dias contados e tendo que aguentar mais um dia nesse mundo de merda.
Acho que morro hoje.

Parque de Diversões

A cidade onde eu vivi até completar os doze anos de idade era um fim de mundo esquecido por Deus e só foi lembrado por meus pais pois lá moravam meus avós que eram os únicos que poderiam matar a fome de sua filha, do marido desempregado e dos quatro filhos e mais um à espera. Fui o único filho a nascer lá, todos os outros eram frutos da insistência na vida de fome na capital onde meus pais se viravam para se manter.

Minha mãe, Maria Francisca, casou-se com meu pai, Antônio, ainda aos dezessete anos em meio à euforia e à esperança de construir uma vida feliz ao lado daquele que por tanto tempo namorou no colégio, saiu da casa dos tios, onde morava para estudar e foi morar em uma casa cedida pelos meus avós paternos, que desaprovavam o casamento do seu filho com aquela mulher sem bens e sem nome. Todos os planos, todos os sonhos e todas as esperanças se desfizeram nos primeiros meses. As dificuldades em conseguir trabalho e com a chegada dos filhos fizeram com que a situação fosse piorando. Foi então que tomaram a decisão de se mudar para a cidade da minha mãe onde seriam ajudados pelos meus avós maternos.

Cresci em um ambiente de amor, nunca me faltou nada, ajudava meu pai na roça, que no começo não levava jeito algum para a lavoura, contava meu avô, mas que com o tempo foi pegando a prática de cuidar da terra e conseguiu comprar sua fazenda e não precisaria mais trabalhar para sustentar os outros, poderia se preocupar em fazer aquilo o que mais desejava: garantir a educação para seus filhos.

- A única coisa que a terra não leva é a educação – dizia meu pai.

Juntou os ganhos de meses de colheita para poder dar ao seu filho mais novo, aquele que ainda teria alguma chance, a oportunidade de iniciar e, com sorte, concluir os estudos. Me embarcou em um ônibus na beira da estrada, minha mãe com lágrimas nos olhos tentava sorrir.

Na cidade pude ver que o sangue pouco significa para os olhos cegos pelo ódio e rancor. Nos primeiros dias já pude sentir na pele toda a raiva de minha avó que em meio a surras sem razão me encarava com os olhos, muito pelo meu olhar penetrante e desafiador igual da minha mãe o que para a minha avó era uma afronta e uma lembrança amarga das respostas atravessadas que minha mãe disse no passado.

Desde quando desembarquei no terminal rodoviário, senti o gosto amargo da ausência dos meus pais, mas em um dia tudo se iluminou como céu com fogos em noite de São João. A capital nunca havia se mostrado tão espetacular como essa noite. Ao sair da casa da minha avó, caminhei pela rua estreita frente à casa onde vivia que me levava ao terreno da igreja, levava comigo uma caixa com doces para vender no arraial que o pessoal da igreja estava organizando, o período de aulas já estava se encerrando e eu ainda não havia sido matriculado, minha avó alegou que não havia vaga em nenhum colégio da cidade, enquanto isso eu vendia os doces que ela preparava.

Ao dobrar a esquina que dava para a igreja me deparei com um espetáculo de luzes e sons dissonantes que, junto aos gritos de crianças, formava a cena que levarei comigo para o resto da minha vida. Nunca havia visto um parque de diversões, todos aqueles brinquedos girando em sincronia, um festival de cores distribuídos em balões, algodões doces e sorvetes. As pessoas me paravam perguntando pelos doces que estavam à venda, eu respondia em poucas palavras, de forma automática, estava maravilhado com aquilo que era novo para mim.

Quando os sinos da igreja avisaram a chegada das nove horas da noite percebi que já era a hora de ir para casa, a caixa de doce estava quase vazia, lutei por muito tempo para não gastar o dinheiro andando em algum brinquedo, voltei para casa, naquela noite levei horas para conseguir dormir lembrando das felicidades daquelas crianças que brincavam ali, não pareciam ter problemas, sorriam de forma fácil, dócil, eu queria aquilo, queria que minha mãe visse aquilo, as vezes nossos sorrisos servem apenas para que as pessoas que estão ao nosso lado se sintam bem.

No outro dia, na mesa do jantar, o assunto era o parque de diversões, os meus primos, que haviam acabado de chegar de suas aulas, conversavam sobre os brinquedos e aquilo foi me doendo no peito, sentia ciúmes por tomarem conhecimento da chegada do parque, queria aquilo só para mim. Meus primos herdaram o ódio da minha avó e sempre me trataram como um estranho no ninho, e eu realmente era assim, não acreditava que fazia parte daquela família.

Após o jantar, lavei as louças, peguei a caixa de doces. Ao sair vi meu avô distribuindo o dinheiro entre os três netos para brincarem no parque. Na esperança, fiquei por perto e o vi olhar para mim e guardar a carteira no bolso.

Engoli o choro.

Ao descer a rua, um vizinho me chama.

- Ei, moleque, vem aqui. Quanto tá esse doce?

- Cinquenta centavos, senhor.

- Toma esse dinheiro, vai brincar. Larga esses doces aí.

Na mão havia uma nota de cinquenta reais, dinheiro que nem em sonho pensava em ter. Dava para ir para a minha cidade, no primeiro momento meu desejo foi esse.

- Eu não posso aceitar.

- Deixa de coisa e vai logo! Te vi ontem lá. Aproveita esses momentos, moleque, quando eu era pequeno eu gostava de parque de diversões também.

Voltei para a casa dos meus avós, guardei a caixa de doces em um canto próximo ao muro e corri em direção à igreja. Cheguei lá encontrei meus primos espantados comigo na fila dos brinquedos. Aqueles foram os melhores momentos de minha vida. Foram os momentos de felicidade pura, essa alegria que devemos experimentar sempre. Fui em todos os brinquedos, comi algodão doce, maçã do amor, ganhei um urso na barraca das argolas.

No fim da noite eu estava tonto, minha cabeça explodia com uma dor que latejava, mas eu não ligava. Eu ainda estava em êxtase. No bolso ainda havia dinheiro suficiente para pagar os doces e para a segunda maior felicidade daquela noite.

Corri para o comércio do Seu Augusto e comprei três fichas telefônicas e disquei para o número que eu repetia todos os dias desde que saí da minha cidade, o número do telefone da vizinha dos meus país, nunca consegui ligar da casa da minha avó pois ela trancava o telefone. Ataquei o teclado do telefone. Depois de alguns instantes uma voz de sono e cansada atendeu.

- Alô, Dona Marta? Sou eu, César. A senhora poderia chamar minha mãe?

A garota holandesa

Os primeiros raios de sol começam a entrar nas frestas da janela do velho casarão e Flor se dirige à sua bicicleta que está parada próxima à entrada. Todos os dias a moça de cabelos castanhos vai até a padaria Santa Luzia, rua à cima, para comprar ovos, pães e cigarros.

Nascida Fleur, a jovem holandesa desembarcou há onze meses no terminal rodoviário de São Luís, Manoel, que estava no local para receber alguns clientes ficou sensibilizado (há quem diga que encantado também) com a jovem que só sabia pronunciar "ajuda" e "bom dia". Longe de completar qualquer diálogo com a moça o senhor recorreu a sua filha Carol, que o acompanhava, para perguntar se ela estava bem ou se estava perdida.

Em uma conversa rápida em inglês, Carol voltou para o seu pai e disse que a moça precisava de um lugar pra ficar por uns dias e que estava fugindo de seu país.

Fleur entrou na pequena van e foi levada para o centro da cidade, sempre com os olhos atentos para as luzes fracas que tentavam, de forma inútil, iluminar as avenidas irregulares.

Pelo centro da cidade eles percorreram algumas ruelas onde dificilmente passaria qualquer carro de passeio, mas Manoel, com sua habilidade de anos dirigindo por essas ruas, fazia com que a pequena van vermelha trafegasse por elas sem problemas.

Finalmente chegaram à Pousada da Serpente. Um prédio amarelo, portas e janelas pintadas de cor verde, desbotado com o tempo, aparentava ter três andares, com telhado envelhecido e cheio de plantas. Manoel desceu do carro, pegou as malas dos hóspedes e entrou na pousada, pediu a filha que falasse para moça esperar.

Ao voltar, com sua esposa ao lado, Manoel ajudou a moça a sair do carro e pegou sua mochila.

"Meu bem, essa moça estava na rodoviária, desamparada, Carol falou com ela e ela pediu nossa ajuda"

A mulher abriu um sorriso sem graça e estendeu a mão para cumprimentar a moça que estava acanhada à sua frente.

"Prazer, sou Dona Pêta"

"Ela não fala português" exclamou Manoel.

"O nome dela é Fleur" disse Carol logo em seguida e cochichou alguma coisa para a jovem.

Fleur abriu um grande sorriso e disse: "Bom dia"

Flor passou a usar sua versão aportuguesada do nome muito por causa da sonoridade que, apesar de parecida com o verdadeiro, soava de forma mais amorosa. Aprendeu a falar português com uma certa fluência e não saiu da pousada, conseguiu um pequeno quarto o qual pagava com seu trabalho na recepção e na ajuda com o café da manhã.

Tinha um carinho muito grande por seu Manoel e Dona Pêta, mas foi com Carol que criou laços mais fortes. Contou para os três, em uma das noites cheias de calor onde os três sentavam à porta da pousada, que fugiu da sua cidade natal, Voledam, na Holanda, logo após a morte de sua mãe, não aguentou ficar com seu padrasto que abusava e maltratava ela e sua irmã, Eva. Por uma tragédia do destino, Flor conheceu um cafajeste na estação de trem de Amsterdã que a fez mudar de ideia quanto seu sonho de ir à França e arrumou as documentações para que eles pudessem ir direto para São Paulo onde, depois de uns dias em um hotel vagabundo e fedendo a mofo, o malandro sumiu com quase todo o dinheiro que ela conseguiu roubar das economias da mãe inclusive seus documentos, que estavam na bolsa que guardava o dinheiro, foram elevados. Flor ficou apenas com o dinheiro que guardava em sua mochila, pegou um ônibus na rodoviária de São Paulo sem saber o seu destino e a falta deste fez com que a moça viesse parar em São Luís do Maranhão, último ponto da rota.

Toda essa reviravolta em sua vida não apagou o belo sorriso no rosto da holandesa. Sempre fazia suas obrigações cantarolando musicas em francês e distribuindo "bom dia" e "seja bem vindo" para todos os hóspedes.

Seu momento preferido era logo após o café da manhã quando tinha um tempo para passear em sua bicicleta.

Flor já era conhecida no centro da cidade, um de seus passeios favoritos terminava na Praça João Lisboa onde uma velharia gastava seu tempo jogando conversa fora ou jogando dominó. A holandesa fez amizade com todos, gostava daquele momento e eles, claro, adoravam a companhia dela. Há quem diga que o ponto alto de movimentação da praça acontecia justamente quando Flor estava presente.

A moça dividia sua atenção entre uma partida de dominó onde um ou outro abria um sorriso sem dentes quando ela comemorava uma vitória, e uma conversa sobre sua cidade natal. Mas todos gostavam quando Flor começava a cantar, em francês, música que lembrava sua mãe, a emoção na voz fazia com que os velhotes se emocionassem juntos.

Dentre os que mais conversavam com Flor estava Seu Raimundinho que trabalhava como engraxate na praça, ele já tinha oitenta e dois anos e seus dedos eram encolhidos devido a artrite e os calos causados pela profissão.

Como todos os dias Flor aparecia para alegrar a vida dos presentes no dia de sua ausência esperaram até o horário de costume para se darem conta que ela não apareceria mais. Uma forte onda de preocupação tomou conta de todos os presentes.

"O que aconteceu?" Perguntou Seu Raimundinho para um moleque que entregava salgados para diversas pousadas, inclusive a que Flor se hospedava, "Cadê a Flor?" O moleque balançou a cabeça negativamente e disse que talvez ela estivesse com problemas. A turma de velhotes elegeu Oscar, ex fiscal de rendas e, portanto, um dos mais letrados, para averiguar a situação e ele prontamente se deslocou até a Pousada da Serpente.

Todos já estavam aflitos quando Oscar chegou, suando em bicas, e começou a falar.

"Seu Manoel me falou que Flor está com problemas com a justiça, alguém no país dela está exigindo que ela seja presa pois roubou um dinheiro e estão querendo enviá-la de volta para a Holanda"

Ao término da frase todos se viraram para Pedico, que estava sentado em um dos bancos. Pedro Morais, o Pedico, era um dos poucos velhos que ainda trabalhavam, dava meio expediente como despachante na delegacia de Polícia Civil.

"O que foi pessoal?" Exclamou Pedico, com uma certa surpresa.

"Como que pode? Isso acontecer embaixo do teu nariz e você não nos avisar? É muita falta de consideração com a gente, logo nós que fazemos parte do clube do dominó" Falou Seu Humberto, taxista.

"Eu não sabia de nada" disse Pedico, cabisbaixo "Vou averiguar assim que chegar no trabalho"

"Acho que inclusive está na hora, não acha?" Falou Seu Raimundinho.

Às seis horas da tarde o movimento da Praça João Lisboa se deslocou para a porta da Delegacia, todos à espera de Pedico para saber da situação do processo de Flor.

"Más notícias meus bons, Flor vai ter que pegar o avião de volta amanhã, já é um caso federal"

"Você é um incompetente!" Disse Seu Luis, dono da Farmácia "Droga é Vida", partindo pra cima de Pedico, mas foi contido por seus colegas.

A turma se desfez outra vez.

No outro dia, seis horas da manhã, um aglomerado de velhotes começou a se formar na frente da Pousada, Dona Pêta, com uma cara inchada de choro e sono recebeu o comitê de aposentados na pequena recepção. Quando a polícia chegou, uma tentativa de cordão de isolamento foi feito pelos velhinhos, mas sem sucesso.

A polícia entrou em um dos quartos e levou a pobre moça, que chorava quando abraçou um por um, tentando forçar um sorriso. Aquilo partiu o coração de todos.

A nova pauta das reuniões na praça João Lisboa era saber se alguém tinha notícias de Flor.

Todos estavam reunidos, menos Pedico, que foi expulso do clube do dominó.

Bandido classista

Olegário estava na porta do banco esperando sua primeira vítima. O relógio em seu pulso mostrava que já passavam das cinco da tarde, sua camisa social amarela estava mergulhada no suor que fugia do seu corpo mostrando seu nervosismo com a situação, tentava afastar do pensamento todos os problemas que o fizera chegar a esse ponto. Havia planejado sua ação há dias e nada poderia dar errado naquele momento.
Finalmente o velhaco avistou a isca perfeita. Um senhor desceu sozinho de um luxuoso carro para utilizar os serviços do banco, como já havia terminado o expediente bancário, o idoso, em posse de um papel na mão, entra na agência e se dirige aos caixas eletrônicos, passando antes para pegar um envelope para depósito, o último que restou no recipiente.
"Que sorte a minha" pensou o velho.
"Que sorte a minha" pensou Olegário.
Dirigindo-se a um dos caixas e demonstrando pouca familiaridade com o equipamento, o idoso tenta, sem sucesso, depositar o dinheiro na conta que estava sinalizada no papel, depois da terceira tentativa desiste e resolve pedir socorro.
- O senhor pode me ajudar? – pergunta o velho para o rapaz que estava no caixa eletrônico ao lado, um sujeito bem vestido, calça social preta, sapato bem lustrado e uma camisa amarela.
O rapaz abre um sorriso felino.
- Sim, o que houve? – responde Olegário, seco, tentando passar um pouco de impaciência na voz.
- Não consigo depositar o dinheiro para meu filho.
- Deixa eu ajudar.
Olegário que carregava também um envelope de depósito em sua mão, fingiu cancelar as operações em seu caixa eletrônico e se dispôs, sempre com um ar impaciente, a ajudar o senhor.
Rapidamente, o rapaz consegue efetuar o depósito, deixando o senhor maravilhado com a rapidez em que os jovens dessa geração se dão bem com as novas tecnologias, sem perceber que, em um movimento digno de um gatuno experiente, Olegário trocou os envelopes, depositando o seu, cheio de papéis recortados.
- Muito obrigado. Meu filho me encheu o saco o dia todo por esse dinheiro para comprar um videogame, não tenho conta nesse banco e ele está viajando. Essas máquinas quando dão problema são um porre.
- Pois é! – devolveu Olegário com um sorriso.
Quando viu o idoso entrando no carro, dando a ré e saindo pela avenida, Olegário pensou que iria explodir. Sua vontade era de sorrir, de gritar e comemorar, estava sozinho na agência, mas não poderia fazer isso. Resolveu abrir o envelope. Dois mil e quinhentos reais. "Dois paus e quinhentos. Era muito dinheiro. Eram seis meses de aluguel. Tudo isso para um moleque comprar um videogame" pensou ele.
Esse foi o primeiro de muitos golpes que Olegário aplicou em sua escalada. Morava em uma kitnet imunda de apenas dois cômodos, com o tempo, comprou seu próprio apartamento. Sempre preferiu roubar de quem aparentava ter condições financeiras suficientes para não sentir falta de uns trocados a mais. Certa vez, enquanto falava com Raul, seu parceiro em alguns crimes, Olegário deixou escapar o motivo.
- Tive uma infância lascada, sabe? Não tiro de quem não tem nada – se explicou o bandido.
- Essa é boa. Primeira vez na minha vida que vejo um bandido com consciência de classe. Olega, presta atenção, uma hora a barra pode sujar pra ti.
- Pode ficar tranquilo, meus negócios são diversificados. É aquela coisa, quando um sapato ameaça descolar a chance do outro pé descolar de vez é maior. Precaução é tudo.
Com o passar do tempo, aquilo que Olegário chamava de empreendimento foi dando cada vez mais resultado e com uma vida social mais movimentada acabou se apaixonando por Fernanda. Começou a batalha para mascarar seus negócios, comprou um pequeno comércio o qual alegava tirar toda sua riqueza, matava dois coelhos com uma cajadada só, enganava a futura esposa e o fisco. Passou então a recolher imposto e a dividir os bens.
Olegário se sentia um vitorioso, de uma infância na merda, comendo o que achava no lixo, sempre renegado pelos olhos do governo, sempre batalhou, ao seu jeito, para vencer na vida, não aceitava o fato de outras pessoas se acomodarem e ficarem paradas esperando que as autoridades fizessem alguma coisa por elas.
Aquela raiva consumia-o.
Deixando os princípios de lado, Olegário estava prestes a aplicar seu novo golpe. Passou muito tempo planejando este empreendimento, em seu relógio, dessa vez um relógio importado, reluzente e pesado, marcava quinze horas, seu terno não escondia o suor que o fez lembrar do seu primeiro golpe. Afastou o pensamento. Era um novo homem agora, sem essa de pequenos golpes, tinha que pensar em si, teria que correr atrás dos peixes grandes. Com uma pasta de couro em sua mão esquerda e sentado em uma cadeira, esperava impacientemente em um corredor mal iluminado. Um homem abre a porta do escritório em sua frente e chama.
- Atenção todos os interessados em participar da licitação para compra de merenda escolar. Por favor, venham comigo. 
Olegário havia mudado de classe.

Bombom de Alho

Eram quase três da manhã quando terminei de ler A Divina Comédia, de Dante Alighieri, em sua versão em inglês. Fechei o livro e fiquei esperando que alguém aparecesse na sala para me aplaudir, ninguém apareceu. Até Romeu, meu gato, já estava dormindo à essa altura. Ninguém que contemplasse tal feito. O livro todo em menos de um dia. Realmente eu precisava fazer algo da minha vida.
Parei então para olhar o celular e vi algumas conversas que não me interessavam, saltei o olhar para o computador, sentei na cadeira e tentei escrever algo, sem sucesso.
Estava travado.
Sentei na cadeira que fica na varanda e, com um copo de whisky na mão, recordei da conversa que tive com Rita mais cedo.
Rita era a ex-namorada de meu amigo Bruno, cabra safado mas que um dia seria um grande escritor.
Eu havia saído pra comprar umas frutas e legumes na feira daqui do bairro e, por uma infeliz coincidência, eu a encontrei na banca de alho e especiarias.
-          Ricardo? Quanto tempo!
-          Oi, Rita! Pois é!
-          Como tá o Bruno?
Geralmente, Rita começa sua conversa comigo perguntando sobre o Romeu, meu gato, que por outra infeliz coincidência da vida é filhote de uma de suas sete gatas. Depois disso que ela vai perguntar sobre o seu ex-namorado.
-          Nunca mais o vi.
-          Mentira! Eu sei que vocês se falam todos os dias.
-          Bom, se você sabe…
-          Sei sim! Só quero que da próxima vez você dê a ele um recado para mim: que ele vá se foder.
-          Ok.
Pobre Rita. Há tempos o nome dela não é sequer pauta nas minhas conversas com Bruno. Ele me fala de Vitória, Cintia, Teresa e algumas outras. Mas nada de Rita. Talvez esse tivesse sido o problema de Rita, ela achava que merecia mais atenção do que era dada.
Da minha cadeira, voltei a atenção para o copo de whisky, levantei e peguei o telefone, liguei pra Bruno.
-          Fala safado.
-          Porra, Ricardo, sabe que horas são?
-         Não interessa… Tu nem sabe quem mandou tu se foder hoje, a Rita!… Ah, mais uma coisa, tu nem acredita! Consegui ler A Divina Comédia, em inglês, somente em um dia…
-          Fala sério, um dia?

A espera...

Quinta-feira, 19h, espero ansiosamente você aparecer na porta. Era para você ter chegado na segunda-feira da semana passada, mas perdi as esperanças na sexta-feira, não havia chegado. Você atrasou e nem sequer me deu nenhuma satisfação.
Eu sei que parte da culpa é minha, pois não é fácil para você chegar até aqui, moro muito longe, em uma cidade cheia de problemas que dificultam o nosso encontro, mas mesmo assim criei esperanças e as alimentei de formas que qualquer batida na porta meu coração acelerava, minha pupila dilatava e eu corria para a porta para ver se era você quem havia chegado, mas não era.
Infelizmente não tivemos condições para que a sua vinda fosse rápida. A espera, as vezes, é resultado da falta de dinheiro.
Olho para o relógio e esgoto totalmente minhas possibilidades de vê-la hoje, já são 21h. Preparo um chocolate quente, como alguns biscoitos e fico sentado na frente do computador tentando obter algumas notícias tuas, tudo em vão. Vou deitar e não consigo dormir, chega a ser doentio. Fico pensando se você está bem, por onde estás, adormeço pensando em você.
No dia seguinte a esperança se renova, estou de férias e prefiro ficar em casa esperando você chegar, já é sexta-feira e sei que o quanto mais nos aproximamos do final de semana menor a chance de tê-la em meus braços.
Às 18h toca a campainha, eu corro, bato o dedinho do pé na mesa de centro e abro aporta!
Era apenas a D. Mariazinha pedindo para eu diminuir o volume da música que eu estava ouvindo.
Abaixo o som e fico pensando em você, nos momentos felizes que passaríamos juntos se você já estivesse aqui comigo, minhas esperanças de vê-la essa semana é quase nula, vou deitar conformado e adormeço, mais uma vez, pensando em você.
No sábado, sem esperar, você toca a porta, recebo-a com o sorriso no rosto, agradeço e entro em casa com um sorriso no coração também.
Nunca pude esperar que os correios entregasse uma encomenda no sábado, apesar das reclamações no site o produto chegou no prazo eu é que queria que ele chegasse logo. Infelizmente é assim toda vez que pedimos alguma coisa na internet.

Cada um com seu cada qual

Sandra e Tereza são irmãs e dividiam um quarto na casa da avó com a prima delas, a Ritinha, após a escola, enquanto brincavam, as três ficavam fazendo planos para o futuro.
- Ah!, quando eu crescer eu vou me casar com um dono de Comércio! - dizia a Sandra, que era a mais nova das três.
- Ah!, pois então eu me casarei com um fazendeiro, que tem muito mais dinheiro que um dono de comércio! - dizia a Ritinha enquanto escovava os cabelos da boneca.
- Eu quero apenas alguém que goste de mim e me leve para passear todos os finais de semana. - dizia a Tereza, a mais velha de todas.
O tempo foi passando e parecia que as três fizeram daquela brincadeira um plano.
Sandra tão cedo começou a namorar Leandro, filho do seu Zequinha, dono do maior comércio da cidade.
Ritinha foi morar com a mãe na cidade vizinha e sempre que aparecia contava para as primas as novidades do namoro com Ricardo, filho único de um velho rico dono da maior fazenda da região.
Tereza era a única que ainda não tinha alguém para namorar, sempre ouvia atenta as histórias das meninas e ficava ansiosa esperando o dia em que ela teria alguma novidade para contar, ficava esperando o dia que seria ela quem chegasse com as flores e o sorriso na cara e diria "foi Fulano quem me deu!"
Certo dia chega na casa da avó o convite de casamento de Ritinha. Foi uma festa, parecia o carnaval, três dias de folia, churrasco, cerimônia, teve até bolo! Na festa, na tradicional jogada do bouquet, Sandra pulou mais alto que todas, pegou as flores e ao cair olhou para Leandro com o olhar intimidador, como se dissesse "Sua hora está chegando!" 
E não demorou muito, dois meses depois estavam todos lá para a festa de casamento de Sandra. Dessa vez uma festa mais moderada, em apenas um dia, mas teve bolo também e foi justamente nessa festa que Ritinha anunciou para todos que estava esperando seu primeiro filho, noite perfeita! Exceto para Tereza que dessa vez pegou o bouquet mas não tinha ninguém para olhar na hora.
Anos se passaram, Tereza namorava Pedro Henrique, ambos já tinham seus 28 anos de idade. Pedro Henrique, o PH, trabalhava de auxiliar em um escritório no centro da cidade, mas todas as noites passava em claro estudando para a conseguir algum cargo público, era muito determinado. Um ano depois de pedir Tereza em namoro os dois se casaram e foram morar na casa que a avó da Tereza deixou pra ela.
"Deixo a casa para a Tereza no desejo que ela não se torne uma 'moça velha'", dizia a velha no testamento.
No casamento dos dois não teve bolo, nem festa e nem bouquet, afinal, quem iria pegar, uma das três filhas de Sandra?
O casamento de Tereza foi um marco da vida das três também, Sandra e Ritinha tinham algo em comum além dos maridos ricos nascidos em berço de ouro, ambos estavam com seus negócios falidos. Nem todos têm o dom de tocar a empresa do pai, apesar da graduação de ambos em administração. Foi nessa noite também que PH deu a excelente notícia de que teria passado, em primeiro lugar, no concurso para o mais alto grau de uma repartição, faltava apenas a segunda etapa, "moleza, o pior já passou", "está com a vida ganha", diziam.
Alguns meses depois, no aniversário de uma prima, elas estavam lá, as três reunidas, contando sobre a vida.
Sandra e Leandro tiveram que vender a casa e estão morando em um apartamento, Leandro trabalha agora de corretor de imóveis numa empresa no centro, até que leva jeito pra coisa. Ritinha e Ricardo permaneceram na fazenda porém tiveram que vender vários lotes de terra para pagar algumas dívidas. Ricardo agora trabalhava de auxiliar administrativo na cidade em que moravam, para alguma coisa serviu o diploma de administrador.
Tereza e PH ainda continuavam na mesma. PH não passou na prova da segunda etapa e ainda por cima voltou pro emprego que havia deixado para ter tempo para estudar. É assim mesmo, a vida é uma droga.

Pão com Mortandela

A vida de Rodrigo, dono da padaria da esquina, mudou completamente no dia que ele contratou Maria Isaura como uma de suas atendentes.
A moça não sabia cozinhar, trocava alguns pedidos dos clientes, não gostava muito de limpar as mesas de lanche, mas todo o incômodo que Rodrigo sentia, com o despreparo da funcionária, se desfazia quando ela do salão gritava: "Saindo um pão com mortandela"! Isso mesmo, mortandela, com ênfase naquele "n" intruso no meio do nome. Ele adorava ficar ouvindo a atendente gritar esse nome. Não se importava nem um pouco e nem fazia questão de corrigir a moça como fazia com os outros funcionários:
- Seu Rodrigo, eu queria um aumento. - falou um padeiro certo dia.
- Ah! Então o Senhor queria, agora não quer mais?
Mas com Maria Isaura era diferente.
As vezes ele instigava a moça a falar.
- Maria, o que tem pra comer?
- Tem pão com manteiga, Seu Rodrigo.
- Eu queria algo mais incrementado.
- Ah, então eu faço um pão com mortandela pro senhor!
Rodrigo se derretia.
- Mas Seu Rodrigo, essa moça fala errado. - dizia a cozinheira.
- Deixa ela! Ela está aprendendo! Tu já nasceste sabendo?
Rodrigo parava tudo que estava fazendo quando via que ela ensaiava gritar um pedido para a cozinheira.
- Saindo um pão na chapa!! - gritou a Maria Isaura.
Rodrigo já estava voltando ao trabalho quando ouviu:
- Cancela o pão na chapa e prepara um pão com mortandela.
Rodrigo deixava escapar um sorriso sacana.
E anos se passaram e Rodrigo nunca se cansou de ouvir tal palavra.
A cozinheira, percebendo o gosto do patrão, tentou:
- Seu Rodrigo, quer um pão com mortandela?
- Não, obrigado.
Era Maria Isaura que tinha um jeito especial de falar "mortandela".
Alguns anos depois Rodrigo e Maria Isaura estavam casados. Tiveram um menino. O nome? Guilherme.
Mas Maria Isaura, para felicidade de Rodrigo, pronuncia Guilérme.

As beatas

Toda missa naquela igreja daquela pequena cidade acontecia da mesma forma, como se fosse uma cartilha.
Antes do padre entrar começava o falatório.
- Mulher, tu não estás sentindo falta de alguém não? - perguntou Dona Antonieta para suas duas amigas de reza.
- Lógico que eu estou! Da Carminha, filha do Manoel, por onde anda essa menina? - respondeu prontamente Dona Catarina enquanto tirava o terço da bolsa e enrolava na mão.
Dona Quitéria ficou quieta e prestava atenção na conversa das duas, ela era nova na igreja e voltara à cidade recentemente para tratar da saúde e decidiu acompanhar as velhas amigas de conversa pela primeira vez à missa, enquanto ajeitava a roupa da neta e esperava o padre entrar acompanhou as duas senhoras.
- Mulher, tu não achas muita coincidência ela sair junto com aquele soldadinho meia-boca que veio aqui naquela campanha? - Indagou Dona Antonieta.
- Vocês são muito ingênuas, ela pegou barriga, eu juro por Deus - e fez o sinal da cruz -, que vi aquela menina engordar mais que o normal. O pai foi logo atrás do soldadinho, como é o nome dele? - perguntou D. Catarina.
- Ribamar. - respondeu D. Antonieta de prontidão.
- Esse indivíduo mesmo! Não duvido nada que, daqui há alguns anos, ela aparecer aqui com uma criança e deixar para avó cuidar, pobre Conceição, já não basta o filho que é drogado. - lamentou a solícita D. Catarina.
- Pois é, esse mundo está perdido, não é Quitéria? - falou D. Antonieta.
As três olharam para D. Quitéria. Sim, a netinha dela estava prestando atenção na conversa.
- Está sim - concordou Dona Quitéria.
Foi quando entrou o padre que, como por uma ironia, começou sua fala citando o livro de Provérbios em seu capítulo 20 versículo 19 que diz: "O que anda tagarelando revela o segredo; não te intrometas com o que lisonjeia com os seus lábios"
- Fofoca é mesmo horrível. Será que a Rita, aquela fofoqueira, está ouvindo isso. - atacou D. Antonieta.
- Com certeza, a carapuça serviu. - assentiu D. Catarina.
Dona Quitéria ficou calada.
Após a liturgia da palavra foi a vez de D. Catarina questionar as amigas:
- E a Regina, mulher do prefeito?
- 30 anos mais nova, 30 anos, minha filha. - respondeu D. Antonieta.
- Ele não tem vergonha não, tamanho velho daquele andando com uma menina que poderia ser filha dele. - completou D. Catarina.
- Se fosse minha filha eu iria proibir - concordou D. Antonieta.
- Oras, mas a Maria, sua filha, não casou com o Dr. Geraldo, que era bem mais velho? - alfinetou D. Catarina.
- Aí é diferente, Catá, ele nunca foi casado, o prefeito tem até filha, aposto que é da idade da Regina. - respondeu D. Antonieta.
E o padre continuava a missa.
- Olha lá a Soraia, como se nada tivesse acontecido. Ela pensa que ninguém sabe que ela colocou galhos no marido dela. - comentou D. Antonieta.
- Pobre Osvaldo, trabalhava noite e dia para sustentar essa daí, e olha o que ela dá em troca. - disse D. Catarina.
D. Quitéria apenas observava.
E assim a missa seguiu até o final. A cada pausa do padre as duas teciam seus comentários sobre quem estava na missa e a D. Quitéria apenas concordava. Nem o padre escapou.
- Esse padre novo é fraco. - iniciou D. Antonieta.
- É sim, prefiro o outro. - concordou D. Catarina.
- Esse padre é muito novo, não sabe tocar uma missa com firmeza. Sinto falta dos sermões do padre Joaquim. - concluiu D. Antonieta.
No final da missa, depois que todos saíram, as três beatas continuaram para fazer suas orações e finalizaram com o tradicional pai nosso.
- [...] E não nos deixei cair em tentação, mas livrai-nos do mal. - oravam as três de olhos fechados e com muita devoção.
- E das más línguas, amém. - completou D. Quitéria.
As beatas nunca mais chamaram D. Quitéria para acompanhá-las à missa. Senhorinha de língua peçonhenta, alegaram.

Miguel, o trambiqueiro.

Miguel levava a vida sossegado, morava com a mãe e vivia da aposentadoria da pobre velha. Tinha seus 36 anos e falar de trabalho para ele era o mesmo que ler a bíblia pro diabo..
Ele ganhava a vida de pequenas enroladas que fazia no dia-a-dia, nada de muito alarmante, pois seu medo de ir preso era maior que o medo da morte.
Miguel namorava Teresa, uma mulher de 40 anos que trabalhava de auxiliar administrativo em uma grande empresa e que jurava de pé junto que seu companheiro trabalhava de representante comercial de uma empresa de Goiás. Adorava quando seu namorado passava para lhe buscar na Kombi dele e a levava para passear nos domingos e ela nunca se importou em abastecer o carro algumas vezes, pois quase nunca Miguel andava com dinheiro na carteira - medo de ser roubado, sabe como é? -, muito menos de empurrar o carro quando o danado não pegava. Para as amigas Teresa era uma iludida.
Miguel sempre teve muito cuidado para não levar Teresa em locais onde tinha algum conhecido, quase sempre preferia um programinha caseiro, ela gostava. Tinha medo de algum conhecido contar para sua amada que ele na verdade não fazia nada além de passar o dia no bar do Noca jogando conversa fora e apostando o dinheiro da mãe no jogo de baralho. Nunca a levou para sua casa, disse que dividia a casa com um pastor amigo dele e que o mesmo não gostava de visitas. Ele mentiu sobre a mãe, disse que a velha morava em uma cidade do interior de Goiás e que sempre teve que mandar dinheiro pra ela cuidar das despesas, Teresa até ajudava ele algumas vezes mandando dinheiro para a futura sogra. 
Até que certo dia chegou na porta de Miguel um oficial de justiça em posse de uma intimação para que ele comparecesse ao juizado. O malandro congelou. No papel dizia que ele era o único responsável pela guarda de um garoto, que uma mulher alegava que era filho de Miguel - deveria ser a última opção da coitada-. No mesmo momento ele ligou para Teresa e avisou sobre uma viagem que ele faria para Goiás para visitar sua mãe que estava doente. Teresa acreditou. Com a namorada de fora da jogada Miguel teve mais tempo de pensar no que faria. Era um estrategista.
Foi ao tribunal e o Juiz determinou que o trambiqueiro tomasse guarda de seu filho. O menino de 3 anos de idade de nome Gabriel o esperava na porta, era a cara do pai, foi fruto de um namoro com Izabel a quem Miguel disse que trabalhava de vendedor de seguros, porém a mentira não durou muito tempo e a mulher descobriu o que Miguel fazia e descobriu também que os desfalques no banco não eram juros e impostos que o governo "comia" dela e sim o ICM (Imposto da cervejinha de Miguel) e não aguentando terminou com ele mas a coitada já estava grávida. Anos depois após uma doença Izabel não sobreviveu mas antes de sua morte fez questão de contratar um advogado para cuidar do futuro do menino. Afinal o filho não escolhe o pai.
Segurando a mão do menino Miguel pegou um coletivo e foi para a rodoviária da cidade, lá ele ligou para que Teresa fosse ao seu encontro pois ele tinha trazido uma surpresa.
Ao chegar lá Teresa se depara com o namorado com um menino no colo e fica imóvel, sem ar.
- Olha Teresa, esse é o meu irmão, Gabriel! - disse Miguel.
- Seu irmão?
- Sim! Minha Mãe não tinha mais forças para cuidar do pobre e pediu para que eu o criasse, infelizmente não pude negar esse pedido. Pois é meu sangue.
- Mas Miguel, você me disse que sua mãe tinha 80 anos.
- Daí o nome Gabriel, pois ele foi um milagre na vida de minha mãe, até hoje os médicos estão incrédulos com o fato de uma mulher naquela idade tenha engravidado. Minha mãe sempre acreditou nessa história de anjos.
- Oh céus! Eu também acredito, isso só pode ser alguma mensagem divina!
Quanto mais absurda a mentira mais próxima da verdade ela se torna. Miguel sabia disso.
- Teresa, eu sei que esse não é o momento, mas você quer casar comigo?
- Ai minha nossa senhora! Quero sim! - respondeu Teresa com lágrimas nos olhos.
Miguel arrumou suas coisas e foi morar com Teresa que era solteira e não podia ter filho e sempre contava a história do jovem Gabriel para todos. Pobre iludida.

Rogerinho boca-frouxa

Rogerinho era um garoto muito tímido, apesar das grandes orelhas, talvez por uma pequena ironia da vida, nasceu apenas com 30% da audição, com isso tinha bastante dificuldades para aprender e se comunicar e foi então que resolveram levar o menino ao médico o qual indicou que ele usasse um aparelho auditivo.
Foi então que tudo mudou.
Rogerinho passou a escutar tudo, maravilhado, escutava até o que não deveria. Mas o principal problema era que o menino falava tudo o que escutava, vírgula por vírgula. Na vizinhança não acontecia nada que que passasse desapercebido pelos ouvidos biônicos do garoto e muito menos da língua ligeira que o menino tinha. Ele morava com as duas tias solteiras, nem elas foram perdoadas pelo Rogerinho, mas elas também eram ouvintes atentas dos causos das vidas alheias que o menino contava todas as noites. Foi através dele que ficaram sabendo que Dona Tereza, mulher do Seu Pepeu, dono da quintanda, o traía com o Emerson, sobrinho do velho que veio do interior para estudar e ajudar na venda. Rogerinho escutava as conversas de seus amigos enquanto brincava, ficava embaixo da janela das casas, como quem não quer nada, e ouvia as confidências de quem lá residia. Era um garoto aplicado.
No colégio, Rogerinho foi a atração principal durante toda a sua passagem, foi lá que recebeu a alcunha de "Rogerinho boca-frouxa", chegou até a fazer um jornal, intitulado "Notícias do boca-frouxa", ele gostava do apelido. Não havia um namorico que não estampasse a página principal de seu jornal, que circulava em apenas uma folha de caderno por toda a escola. O boca-frouxa não perdoava nem mesmo os professores, ele foi o pivô da expulsão da Dona Soraia, que era uma jovem professora que mantinha relações com o diretor, o Professor Augusto, que era casado e sua mulher descobriu a traição graças ao jornal do jovem aprendiz do Deus Cyric, essa notícia foi manchete durante semanas, aqueles tempos foram o auge da carreira de Rogerinho na adolescência. Ele não tinha limites.
Rogerinho então resolveu entrar na Faculdade de Jornalismo, claro, porém o boca-frouxa passou a usar seus dotes de investigação para seu benefício, em vez de soltar na mesma hora as notícias que captava ele as guardava para usá-las quando fosse necessário. Guardou podres de professores, colegas, até a tia do lanche - que somente a título de informação se casou com uma mulher, que batia nela - e ameaçava soltá-los quando algo não ia de acordo com o que ele planejara, porém, não continha seu desejo de compartilhar as notícias e acabava divulgando as fofocas em corredores, mesmo depois de conseguir o que queria. Dessa vez Rogerinho era odiado por todos, o que o deixou triste e sozinho, dizem as línguas de corredor - sim, haviam outras pessoas fofoqueiras -, que boca-frouxa, em toda sua trajetória na faculdade, nunca encontrou um amor.
Depois de formado, Rogerinho começou a pensar na vida e a lembrar de como era feliz no colégio, e tentou reencontrar sua boa fama. Foi então que ele criou um blog, que mais tarde se tornara um site e que hoje é a referência de fofoca e tratamentos da vida alheia em todo o país, próximo ano ele estreará seu próprio programa de TV. Mas nem tudo são rosas. Rogerinho ainda vive sozinho, talvez sua maior amargura, uma vez que nenhuma mulher gosta de homem fofoqueiro. O casal precisa manter suas confidências. Talvez seja o preço da fama.

Barbearia São Francisco

Não há outro lugar no mundo onde o homem possa exalar sua masculinidade do que em uma barbearia. Mas falo daquela antiga, não dessas gourmetizadas. E na barbearia do Carlos, a quem todos chamavam de Carlinhos, não era diferente. Durante a semana o movimento era fraco, mas no sábado o fluxo de clientes aumentava consideravelmente. Carlinhos tinha um público fiel, todos os sábados um grupo seleto ia para a barbearia São Francisco jogar conversa fora, muitos não iam nem cortar o cabelo e muito menos fazer a barba. Iam lá para ver a última Playboy, falar das filhas de seus conhecidos, contar piadas que só os homens acham graça, até Juninho, o filho afeminado de Jeremias, soltava piadinhas machistas que todos gostavam, "era um garoto de ouro" diziam. Carlos gostava da movimentação, ficava sempre conversando com todos e participava de todas as conversas. Havia também o Sérgio, um ruivo com uma barba espessa a quem todos chamavam carinhosamente de "Viking" era ele quem fazia as piadas mais pesadas e os comentários mais carregados de testosterona na barbearia. Tinha o Seu Moreira, um senhor de seus 65 anos que fazia questão de todo sábado marcar presença na barbearia pra jogar conversa fora e sorrir com os comentários de seus amigos. Thiago, apesar da completa calvície que lhe rendeu o apelido de "rollon", ia todo sábado aparar a barba e acompanhar o papeado.
Foram os anos de ouro da Barbearia São Francisco.
O marco da mudança na vida de todos foi quando, em pleno sábado, enquanto todos teciam comentários maldosos sobre a filha de Rogerinho que havia passado na porta, uma moça entrou no recinto e o silêncio dominou o local, Carlinhos, naquele dia, apresentou sua namorada, Simone. A maioria não prestou muita atenção, mas o Viking percebeu que daquele dia em diante a Barbearia São Francisco não seria mais a mesma.
Outro sábado se passou e Carlinhos não tinha comprado a Playboy daquele mês, justo a edição da Tiazinha a qual todos esperavam desde o anúncio. Todos ficaram abatidos naquele dia, mas logo Juninho fez uma piada que todos riram, menos o Viking.
E foi assim, todos os sábados que se seguiram eram apresentadas para o clã as mudanças que alguns notavam e outros não ligavam muito, mas nada passava despercebido pelo Sérgio, que logo coçava sua barba ruiva. O local estava mais limpo, a bancada da barbearia continha agora alguns produtos além do talco, pentes, tesouras e creme de barbear. 
Até chegar no fatídico sábado, o último do mês e o sexto após o marco inicial, onde todos notaram - o Viking com lágrimas nos olhos - o nome "Unissex" pintado na placa, abaixo do nome da barbearia, aquilo deixou todos cabisbaixos, mas não perderam a fé, afinal, quem iria cortar o cabelo num lugar daqueles? Ledo engano. Carlinhos havia comprado uma nova cadeira, colocou mais um espelho, comprou alguns exemplares da revista Cláudia e Simone estava lá pronta para iniciar o trabalho, ela esteve ausente durante todo esse tempo por conta de um curso de cabeleireiro que estava fazendo em São Paulo. Isso criou um clima desconfortável, Seu Moreira passou mal, dores no coração que nunca havia sentido na vida. Thiago, em um acesso de raiva e descontentamento sentou na cadeira e pediu para o Carlinhos tirasse a barba. Viking tentava conter o choro, em vão.
Dois sábados após o ocorrido a Barbearia São Francisco estava fechada, todos que passavam ali acharam isso muito estranho, nunca o Carlinhos havia fechado a barbearia, nem no feriado, nem na morte da mãe. No sábado seguinte foi quando houve o maior choque, o local possuía uma nova pintura, a placa da barbearia estava no chão, o Viking, aos prantos, tratou logo de apanhá-la e levar para sua casa, ao retornar viu a pior cena de toda a sua vida, Carlinhos estava coordenando a instalação de uma nova placa onde havia mudado o nome da sua barbearia, passando a se chamar: CARLOS COIFFEUR.
Viking foi na casa de seus ex-companheiros de barbearia, chamou todos para presenciarem aquela cena que poria um ponto final nas suas atividades de sábado. Todos estavam tristes, Seu Moreira, agora com um marcapasso, estava desolado. Jeremias tentava consolar Viking, que se derretia em lágrimas, porém nesse momento algo chamou atenção de todos ali presentes, algo que decretou o fim da Barbearia São Francisco, Juninho era o novo funcionário do salão.

O velho oligarca, parte 1


Reza a lenda que enquanto certo oligarca de uma determinada província de um grande país das Américas era internado em um hospital, seja lá qual por qual motivo, no andar de baixo da terra o Diabo vivia seus momentos de aflição.
Em um desses dias o Diabo saiu de seu escritório tomado pela angústia e foi tomar um café na lanchonete da empresa. Adolf, seu estagiário, ao perceber a inquietação do chefe foi ao seu encontro e começou:
- Boa tarde, chefe. – falou Adolf em um tom de bajulação – percebi que o senhor anda meio preocupado hoje.
- Boa tarde, Sr. Hitler. É que hoje não é o meu dia. Pois ele está voltando.
- Ele quem?
- Ele – murmurou o pobre diabo – aquele que por onde passa deixa a destruição e a miséria.
- Ah! O Sarn...
- Não pronuncie este nome! Vai invocá-lo! – Interrompeu o Diabo aos berros.
- Me desculpe, chefe. – falou Hitler – mas não acredito que o senhor, todo poderoso, está com medo de um político.
O diabo sorriu.
- Antes fosse só um político, Sr. Hitler. Você já viu o que ele fez com os seus dois feudos? Esse tipo de gente ruim só traz a destruição por onde passa.
- Mas tenho certeza que o senhor e sua família mostrarão quem realmente detém o poder.
- Meu Deus – exclamou o Diabo -, esqueci da família dele! Tenho certeza que não vai demorar muito e a família dele habitará este lugar, se ele fez na terra, por que não fará aqui também? E ainda tem aquela filha dele, quando ela colocar os pés aqui será o fim da SUDIN (Superintendência de Desenvolvimento do Inferno). Aquela ali coloca a Lilith no sapato. Se você acha que aqui tem jogatina espere até a filhinha do papai chegar, nunca vi uma mulherzinha pra gostar tanto de baralho como aquela dali.
- Mas deve haver alguma solução, chefe.
- Eu já fiz de tudo. Nenhum ceifador se atreve a ir lá para dar o último beijo nele. Mas sempre tem um estagiário que quer mostrar serviço, vai lá e faz, depois a desgraça está feita – alfinetou o Diabo.
- Mas chefe, o senhor soube lidar com o Bin Laden.
- Fichinha.
- Com o Mussolini.
- Uma moça perto dele.
- Com o ACM.
O Diabo deu um suspiro de reprovação.
- Adolf – advertiu o Diabo, afrouxando a gravata – você ainda não entendeu a gravidade disso. Ele não vai aceitar ser meu funcionário, não viu o que ele já fez pra ser governador, presidente e senador? Ele sempre quer mandar, e eu serei apenas um SP (Serviço Prestado) dele. Gente como esse senhor só traz a desgraça. Ele acaba com escolas, hospitais, segurança e tudo aquilo que seus estados nunca ouviram falar, nem de longe. Ele condena o seu povo a uma das piores doenças da humanidade, ele apresenta-os para a morte em plena vida. A morte da sabedoria, a morte do bem-estar. Ele domina o seu povo pela miséria. A única coisa que nos resta é rezar.
Hitler aquiesceu.
Enquanto o Diabo colocava açúcar na água, Lilith, sua assistente, veio ao seu encontro e, com um sorriso no rosto, disparou.
- Senhor, ele recebeu alta.
E todos sorriram e se abraçaram.
Mais um dia feliz no inferno.
E que Deus abençoe a Terra.

Da série: Conto das dez.
Escrito em: 07/12/2011
Publicado em: 01/08/2013

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